- Celhas de Aparelho - Pesca Artesanal
Neste território estremenho, a Natureza parece ter moldado uma vivência marcada pela dicotomia entre uma realidade marítima e piscatória, associada à exploração, transformação e comercialização dos recursos marinhos, predominante na península de Peniche, e um mundo eminentemente agrícola, do interior do concelho, onde o amanho da terra instituiu usos e costumes.
Na Etnografia penichense pontificam as tradições, os usos, e os costumes, associados à faina da pesca, e indústrias adjacentes, ao cultivo dos campos ou ao rendilhar dos bilros. A memória de trágicos naufrágios, a arreigada religiosidade popular ou a farta gastronomia constituem, igualmente, importantes traços de um Povo que projeta nas gerações vindouras a herança de um longo passado coletivo.
Percorrer o concelho de Peniche é pois embarcar numa deleitosa viagem pela História, tradições e costumes de um Povo indelevelmente moldado pela incontornável omnipresença do mar e pela graciosa fertilidade de verdejantes planícies agrícolas.
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Pesca
- Ribeira Velha - Anos 30 - Séc. XX
- Fábrica de Conserva - Anos 20 - Séc. XX
O concelho de Peniche foi desde tempos remotos ocupado por populações que viram na pesca um importante recurso económico. Testemunhando esta diacronia, os pesos de rede em cerâmica, da época romana, produzidos na antiga olaria do Morraçal da Ajuda, ou os célebres ossos de baleia, depositados na Igreja de S. Leonardo, em Atouguia da Baleia (vestígios da pesca que tornou famosa esta vila medieval), atestam o longo historial da faina piscatória nestas águas.
Principal actividade económica do concelho, a Pesca foi alvo de um longo processo evolutivo, sofrendo especial transformação durante o primeiro quartel do séc. XX, período em que o advento da traineira e da actual pesca de cerco, substituiu uma ampla variedade de técnicas de captura de matriz tradicional, como as armações à valenciana, as sacadas, os cercos volantes, as caçadas de sardinheiras, ou as redes de lagosta, métodos então utilizados de acordo com as espécies a capturar, e a altura do ano em que se processava a faina. Todavia, na Ribeira Velha, antigo porto de abrigo da povoação, permanece ainda hoje a memória dos tradicionais caíques descarregando no areal, no meio da azáfama, cavala, chicharro e sardinha, capturas que depois de amanhadas eram transportadas em cavalgaduras e vendidas pelo almocreve de Peniche nas zonas interiores do concelho.
Com o dealbar do séc. XX assiste-se igualmente ao desenvolvimento de várias actividades industriais associadas à pesca, tais como a congelação, a produção de farinhas animais ou a produção de conservas, esta última com especial significado económico no concelho de Peniche. Com efeito, a indústria conserveira de Peniche (que segundo dados recolhidos pela Arqueologia, parece remontar à época romana) conheceu neste período um grande incremento, traduzido na laboração, na zona de Peniche de Cima, de perto de uma vintena de fábricas especializadas na transformação e conservação de sardinha.
A importante actividade piscatória desenvolvida em Peniche permitiu, simultaneamente, a implantação de uma sólida indústria de construção naval, assente em estaleiros localizados no exterior das muralhas da povoação.
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Agricultura
- Produção Hortícola no Concelho
Se na vertente litoral do concelho de Peniche impera um tecido económico assente na pesca e indústrias adjacentes, já no interior rural predomina a actividade agrícola.
A presença de cursos de água, como o rio de S. Domingos ou a ribeira de Ferrel, conferiram ao longo dos tempos, aos campos que os marginam, a fertilidade necessária para o desenvolvimento de uma importante produção hortícola e frutícola, destinada ao consumo local e regional.
Para além destas produções de regadio destaca-se igualmente a presença da monocultura de sequeiro assente no cultivo da vinha e na produção cerealífera, principalmente de trigo e milho, esta últimas culturas perpetuadas na paisagem pelos altaneiros moinhos de vento.
Todavia, também na península de Peniche se cultivaram os campos.
Apesar da presença de vários elementos potencialmente condicionantes de uma produtiva prática agrícola, como a salinidade da aragem marítima e a elevada percentagem de terra não cultivada, entre dunas e afloramentos rochosos, desenvolveu-se na península de Peniche uma rentável produção vinícola, particularmente de vinho branco, cultivo que moldou uma verdejante paisagem de fazendas, entrecortada pelos típicos muros de pedra solta.
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Rendas de Bilros
- Oficina de Rendas de Bilros - Séc XIX
- Rendilheira executando uma Renda de Bilros
Se, tradicionalmente, os homens se dedicavam à pesca e à lavra dos campos, as mulheres, para além de auxiliarem na salga, transformação e armazenamento do pescado, entretinham-se, geralmente à porta de casa, a rendilhar delicadas e alvas peças de renda de bilros de Peniche, cuja venda complementava frequentemente o parco rendimento obtido na árdua labuta piscatória.
As rendas de bilros, verdadeiro ex-libris do artesanato penichense, parecem remontar ao séc. XVII, data de que se conhecem os primeiros documentos aludindo a esta arte. É já durante a segunda metade de séc. XIX que se assiste ao apogeu artístico e técnico das rendas de bilros de Peniche, patenteado na existência, por volta de 1865, de oito oficinas particulares, onde as crianças a partir dos quatro anos se iniciavam na produção deste artesanato. Criada em 1887 a Escola de Desenho Industrial Rainha D. Maria Pia (mais tarde Escola Industrial de Rendeiras Josefa de Óbidos), foram as suas diretoras, com relevo para Maria Augusta Bordalo Pinheiro (1887-1889), que incentivaram o ensino da renda de bilros, com desenhos artísticos inovadores e formação de grande qualidade. Atualmente a aprendizagem e aperfeiçoamento da renda de bilros de Peniche podem ser realizados na Escola Municipal de Rendas de Bilros que acolhe de segunda a sexta-feira, jovens e adultos de todas as idades.
As rendas de bilros de Peniche são de dois tipos: eruditas e populares, cujas diferenças assentam, essencialmente, no desenho dos padrões: as primeiras com desenhos muito elaborados, de motivos muito complexos e não repetitivos, o que exige a utilização de pontos muito variados e grande mestria de execução e, as segundas, de desenho mais elementar, cujo motivo é, normalmente, repetitivo, com utilização de pontos mais tradicionais e de mais simples execução.
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Os Amigos de Peniche
História dos Amigos de Peniche e mapa da expedição inglesa a Portugal, 1589
Se há frases que, mais injustamente, firam a sensibilidade e a reputação de uma comunidade honesta e hospitaleira, a dos "amigos de Peniche" - no seu vulgar sentido pejorativo de amigos desleais, amigos de quem é bom fugir... - é uma delas. E, contudo, ainda há quem, ingénua ou maldosamente, teime em não reconhecer o inconveniente dessa injustiça, afrontando a nunca desmentida hospitalidade dos penichenses, quer através de impensados comentários de imprensa, ou de simples títulos de caixa alta, a encabeçar, atrevidamente, notícias de acções de gente desleal, quer até no desenvolvimento temático de peças de teatro ou películas cinematográficas.
Mas o penichense continua a responder à ofensa com a sua honradez e hospitalidade, e, sempre que possível, conta uma história a propósito.
Tendo D. Henrique morrido sem deixar descendência, surgiram naturalmente, como pretendentes ao trono de Portugal, três netos de D. Manuel: Filipe II, rei de Espanha, D. Catarina de Bragança e D. António, Prior do Crato. Era ao primeiro aquele a quem a força dava mais direitos, demais coadjuvado pela perfídia que, ao tempo, grassava na corte portuguesa; e um exército espanhol, comandado pelo Duque de Alba, invadiu o Alentejo, tendo Filipe sido proclamado rei de Portugal.
Não o reconheceu, todavia, D. António que, mercê de mil e uma habilidades diplomáticas, conseguiu que Isabel Tudor, rainha de Inglaterra, pusesse à sua disposição uma armada de cerca de 20 000 homens e "cento e sessenta navios grandes e pequenos" para, com ela, reivindicar os seus direitos; e, a 26 de Maio de 1589, os penichenses viram desembarcar na sua praia do sul parte dos soldados desse exército, comandados pelo general John Norris.
Depois de uma leve escaramuça com a guarnição da Fortaleza - a que não faltaria, sem dúvida, a indiferença dos poucos portugueses às ordens do oficial castelhano D. Pedro de Gusmão e que suporiam, talvez, que com a chegada dos bretões seria possível a expulsão do invasor filipino - , a praça foi tomada e o exército inglês caminhou sobre a capital, ao mesmo tempo que sob o comando do almirante Francis Drake, a esquadra que o desembarcara em Peniche rumava a caminho de Cascais.
Entretanto, entre o receio de uns e alegria de outros, chegava a Lisboa a nova do desembarcar de D. António, passando, entre os seus partidários, a segredar-se, num anseio de esperança: "Vêm aí os nossos amigos... Vêm aí os nossos amigos que desembarcaram em Peniche..."
Mas o exército invasor, e sem que o Prior do Crato tivesse força suficiente para o evitar, avançava na maior das indisciplinas, devastando e roubando as terras por onde passavam - Atouguia, Lourinhã, Torres Vedras, Loures... -, até que, tendo chegado às portas da cidade, acampou nos altos do Monte Olivete onde, pouco depois, os canhões do Castelo de São Jorge, por ordem de D. Gabriel Niño, começaram a despejar metralha. Grande foi a surpresa de John Norris em face deste bombardeamento, pois D. António para conseguir o indispensável auxílio do exército inglês, teria provavelmente garantido não haver necessidade de combater, visto que seria festivamente recebido em Portugal. E o acampamento foi mudado para a Boa Vista e Bairro Alto, de onde, após em breve recontro com os castelhanos, retirou de novo, desta vez para a Esperança.
Dentro das muralhas e durante todas estas manobras, a ansiedade patriótica dos "antonistas" continuava segredando a ocultas : "será hoje que chegam os nossos amigos? Virão hoje os nossos amigos de Peniche?..."
D. António bem deve ter insistido e procurado dar novas garantias, mas aquele exército composto de mercenários não poderia sentir o patriotismo e a dor do infeliz e desorientado pretendente; e assim, dias depois e em face do desespero do Prior do Crato, refugiava-se em Cascais, na mesma esquadra que o trouxera de Inglaterra e desembarcara em Peniche.
- "Porque não entram os nossos amigos?... Porque nos abandonam os nossos amigos de Peniche?..."
E foram baldadas todas as ingénuas esperanças dos partidários de D. António, pois o auxílio que a este fora oferecido teria, por certo, menos o interesse de participar generosamente na reconquista da independência de Portugal que humilhar o orgulho e poderio de Espanha através de um golpe de surpresa, aliás coadjuvado pela suposta fácil sublevação do povo português, cansado de extorsões e ignomínias.
Por muito tempo ficou aberta no coração dos "antonistas", como ferida dolorosa, a desilusão dos amigos desembarcados em Peniche, daqueles amigos que esperavam receber como libertadores e que afinal os tinham abandonado. Mas os homens desembarcados em Peniche e que traíram a esperança dos bons portugueses de então, não eram de cá e partiram como vieram, não ficaram em Portugal...
À distância - que é tempo de defender uma sensibilidade e uma honradez afrontadas sem razão -, consola verificar que não foi penichense algum a trair o compromisso sagrado de uma amizade ou a desiludir a esperança de um infeliz. E ainda hoje, a única resposta que os penichenses encontram para a afronta impensada e injusta daqueles que os julgam amigos infiéis, amigos em que não há que acreditar - afronta que atinge o cúmulo de se olhar com insólita desconfiança para uma pessoa somente por saber-se ser ela de Peniche! -, é continuar a oferecer sempre uma carinhosa hospitalidade; mas também com a firmeza dos simples, é responder como ilustre médico penichense o fez a um seu colega quando, uma vez, este lhe perguntou - certamente com uma pontinha de ironia - o que eram os "amigos de Peniche":
- "Olhe, meu car «amigos de Peniche», são uma cáfila de patifes que eu tenho encontrado por toda a parte, menos lá!..."
E, ressalvada a generalidade, compreende-se nitidamente, e justifica-se, o sentido imperioso da resposta: era um filho de Peniche a repudiar, com amargura, a injustiça de uma afronta de três séculos!”
(In "Peniche na História e na Lenda", de Mariano Calado)